O desaparecimento de Túlio

(Trecho do livro de memorias de Stella e Chico Whitaker)

4 de julho de 2023

Naquela manhã, três ou quatro dias depois do 11 de setembro, logo que o toque de recolher permitiu, Naná surgiu no portão de nossa casa e antes mesmo de entrar foi dizendo, aflita, o que lhe tinha acontecido: no início da noite seguinte ao golpe, militares tinham vindo à sua casa e depois de revistá-la tinham levado presos ela e Túlio à Escola Militar, situada no mesmo bairro residencial de Santiago. Mais tarde nos contou que naquele dia tinham sido convidados, por vizinhos da vila em que moravam, para um almoço – que tinha sido particularmente penoso – para “festejar” o golpe. Para Naná, foram os patrocinadores desse almoço que denunciaram aos militares o casal “suspeito” de exilados brasileiros.

Na Escola Militar eles encontraram muitos outros estrangeiros, moradores desse bairro, interrogados separadamente, um a um, por militares nervosos. Naná pode apresentar seu documento de residência no Chile, e foi-lhe dito que seria levada de volta para casa. Mas Túlio não tinha consigo seu documento, já outorgado, que deixara de retirar no Comissariado de Polícia do bairro. Por isso disseram a ele, e a Naná, que ele permaneceria detido até que ela trouxesse o documento que faltava.

Saímos imediatamente de minha casa para ir ao Comissariado buscar o documento com o qual Túlio seria liberado na Escola Militar. Meu carro tinha chapa das Nações Unidas e eu um passaporte diplomático, de funcionário internacional da CEPAL. Assim, teria provavelmente mais facilidade para circular sem ser barrado, embora minha foto no passaporte ainda me mostrasse com a barba típica, naqueles tempos, das pessoas de esquerda – que eu tinha raspado alguns meses antes, só deixando o bigode… O Comissariado estava fechado, ocupado pelos militares. Disseram-nos que para entrar e retirar o documento tínhamos que pedir uma autorização no Ministério do Interior.

Corremos para o Ministério, situado na praça atrás do Palácio de la Moneda, bombardeado uns dias antes, vendo no caminho, ainda que de longe, corpos abandonados em diversos lugares. Atravessamos a praça, com um ou outro estrondo de tiro esparso, que pareciam partir dos edifícios em torno e imaginamos fossem ainda de livre atiradores fiéis a Allende.

Com a ajuda de meu passaporte conseguimos chegar ao Ministério, passando várias barreiras de soldados assustados. E uma vez lá dentro chegamos ao Major que nos daria a autorização para retirar o documento do Túlio no Comissariado de Polícia do bairro.

De volta à Escola Militar com esse documento, Naná foi informada de que Túlio já não estava lá: fora transferido ao Regimento Tacna, onde tinham sido recolhidas as pessoas detidas na Escola Militar. Naná voltou imediatamente à minha casa para me informar disso e, dentro do horário que o Toque de Recolher permitia, fomos correndo para esse Regimento.

Do lado de fora de um grande portão entreaberto, um sargento nos atendeu – até amavelmente, pois falava com um diplomata – sem, no entanto, nos deixar entrar. Mas nos mentiu – como eu soube depois – dizendo que já não havia mais ninguém por lá. Segundo ele, os detidos no Regimento tinham sido transferidos ao Estádio Chile (foi nesse Estádio que torturaram barbaramente e metralharam Vitor Jara, cantor chileno que tornara conhecidas em todo o mundo as canções de esperança que moviam o Chile no governo Allende).

Mas o sargento também nos disse que nos primeiros dois dias depois da “intervenção militar” não eram registradas nem a entrada nem a saída de prisioneiros nesse Regimento, para onde eram encaminhados, como depois soubemos, todos os detidos na zona central de Santiago. E com um certo cuidado nos disse ainda – com um gesto dos dedos da mão num gatilho – que talvez devêssemos nos preparar para a ideia de que naqueles dias todo mundo estava muito nervoso. Mas quando estávamos partindo para o Estádio Chile, fomos informados que os detidos naquele e em outros centros de detenção já tinham sido transferidos para o Estádio Nacional, que passara a ser o “depósito” principal de prisioneiros em Santiago.

Naqueles primeiros dias tínhamos muita esperança de encontrar Túlio. Assim, logo que pudemos fomos diretamente ao Estádio Nacional. No caminho, ao nos aproximarmos, vimos ao longe aviões da Força Aérea metralhando o que imaginamos que seriam poblaciones ou fábricas dos cordões industriais onde se resistia ao golpe. Não pudemos entrar no Estádio. Para isso precisaríamos também de uma autorização do Ministério do Interior. Fui de novo até esse Ministério, e obtive a autorização do mesmo Major que nos atendera da primeira vez.

Com ela na mão voltei sozinho ao Estádio no dia seguinte e consegui chegar ao Comandante, passando por várias portas em que estavam postados jovens soldados, que olhavam com ar claramente amedrontado aquelas pessoas que iam e vinham. Lá também, não estava registrado o nome do Túlio. O Comandante determinou que ele fosse chamado pelos alto-falantes várias vezes, sem que ninguém se manifestasse, como testemunham, em livros de memórias escritos mais tarde, outros brasileiros que ali se encontravam.

Voltei novamente um ou dois dias depois. Creio que foi dessa vez que, ao entrar, cruzei com brasileiros – militares ou policiais – no balcão de controle. Achei que deviam chegar com seu know how sinistro para interrogar presos e, obviamente, não me identifiquei. Apresentando-me de novo ao Comandante, este chamou religiosas que davam assistência a prisioneiros e pediu-lhes informações. Nada sabiam de Túlio. Esta falta total de registro da passagem de Túlio pelo Tacna e pelo Estádio Nacional reforçou minha quase convicção – que só mudei quarenta anos depois – de que ele teria sido morto na segunda noite depois do golpe e jogado na rua, como tantos outros.

Na vez seguinte em que fui ao Estádio Nacional, a última, o Comandante, de modo aparentemente compungido aconselhou-me a, “infelizmente”, procurar o corpo de Túlio na morgue de Santiago.

Hoje me pergunto se a pessoa com quem eu falava era mesmo o Comandante do Estádio, tido como pessoa dura que não tinha por que ser simpática com “diplomatas”, que iam “indevidamente” àquele centro de detenção e levavam para fora do país “informações distorcidas”. Pelo modo cuidadoso de me tratar era mais provavelmente um subcomandante do Estádio, Major Lavanderos, encarregado dos presos estrangeiros e dos contatos com diplomatas, de cuja história só tomei conhecimento ao voltar ao Chile muitos anos depois.

Lavanderos se mostrara demasiadamente flexível com o embaixador da Suécia, Harald Edelstam, que com sua autorização conseguira retirar do Estádio 55 uruguaios e 13 bolivianos para colocá-los em casas de acolhimento provisório, criadas pela Cruz Vermelha e pelas Nações Unidas, onde aguardariam sua saída para países de asilo. Alguns dias depois ele foi assassinado, com um tiro a queima roupa de outro oficial ao discutir com ele numa mesa do “Clube de Oficiais” do Estádio. Esse episódio, à época apresentado como “suicídio”, me foi relatado em detalhe pelo advogado do Programa de Direitos Humanos que cuidou do processo judicial instaurado a respeito ao fim da ditadura de Pinochet. O oficial assassino foi condenado, e foi reabilitada a memória de Lavanderos e homenageada sua família.

Mas entre uma e outra incursão ao Estádio Nacional, eu tinha ido mais de uma vez sozinho à Escola Militar, buscando informações sobre o traslado de Túlio ao Tacna, pois começava a construir a hipótese de uma execução durante esse traslado. E cheguei a anotar os nomes de quatro jovens oficiais que o teriam levado.

Numa dessas vezes encontrei um ambiente extremamente tenso, em que mal puderam me atender. Fui informado, por alguém mais assustado com tudo que estava acontecendo, de que um general tinha acabado de se suicidar. Era a forma como os militares eliminavam de suas fileiras os oficiais que se opunham ao que faziam, “suicidando-os” como o fizeram com Lavanderos?

No dia seguinte a minha última e triste visita ao Estádio Nacional, fui então, sem Naná, à morgue, no Instituto Médico Legal de Santiago, situado ao lado do Cemitério Geral da cidade. Um colega uruguaio da CEPAL, Germán Rama, se dispôs a me levar e a esperar por mim do lado de fora. Foi um dos momentos mais duros que vivi em minha vida.

Quando apresentei meu passaporte diplomático no pequeno hall de entrada e disse o objetivo de minha visita – encontrar o corpo de um desaparecido – os funcionários da morgue me atenderam com muita atenção, como se previssem o choque que eu teria. E me abriram a porta de um grande salão. Impacto! Um enorme espaço com corpos no chão, organizadamente alinhados uns ao lado dos outros, em várias series até o outro lado do salão. Quantos seriam? Dezenas? Duas centenas, talvez? Um odor pesado de ambientes fechados com restos humanos. Frio. Um constrangedor silêncio em torno de mim.

Mal refeito do choque, consegui ouvir um funcionário me dizer, em voz baixa, que se quisesse procurar a pessoa teria que passar ao longo de cada série de corpos, caminhando entre as cabeças de uns e os pés da série seguinte – homens, mulheres, algumas crianças, todos vestidos, mas com suas entranhas aparentemente esvaziadas e recosturadas. Grandes etiquetas nos corpos já identificados, com os dados a seu respeito. De onde teria vindo toda aquela gente? Das poblaciones, das fábricas ocupadas nos cordões industriais que eu tinha visto serem metralhadas por aviões quanto fui ao Estádio Nacional? Quantos daqueles tinham participado da grande manifestação feita uma semana antes do golpe, pelo aniversário da eleição de Allende, com colunas do MIR repetindo a consigna Pueblo, conciencia, fusil, MIR, MIR! E nas calçadas os que viam o cortejo passar, saltando e gritando alegremente El que no salta es momio! Um turbilhão de lembranças e perguntasinvadiu minha mente.

Depois de passar por uma ou duas series de cadáveres, olhando como podia cabeça por cabeça, me dei conta de que não teria nenhuma condição de reconhecer Túlio. Eu me sentia mal, quase estonteado, não conseguia nem me lembrar de sua fisionomia para poder comparar com alguma daquelas que via. Se seu corpo estivesse naquele gigantesco velório coletivo, sem velas nem orações, seguramente eu não o teria visto.

Depois de caminhar como pude até o fim desse tétrico salão, olhando onde pisar com o maior cuidado possível, fila por fila, o funcionário que me acompanhava, cumprindo com seriedade sua missão, me levou à uma pequena sala com porta para o salão em que os corpos que ainda chegavam estavam sendo esvaziados de suas vísceras e recosturados. Olhei os funcionários que lá trabalhavam, silenciosamente, e as fisionomias dos mortos. Não disse palavra. Senti um olhar de solidariedade. E um sentimento de desacordo com tudo aquilo. Era demais, para todos.

O funcionário ainda achou que deveria me levar a outra sala especial, no andar superior, onde havia corpos jogados em desordem uns sobre os outros. Segundo ele era a sala dos “patos malos”, abatidos por resistirem aos militares. Nas montanhas que se elevavam no fundo de Santiago? Essa bela cordilheira que eu via todos as tardes do terraço de minha casa, construído com essa orientação para que não perdêssemos o espetáculo de cores que a iluminavam diferentemente ao fim de cada dia… Pelas roupas e aspecto dos mortos pareciam jovens, mas mal pude observá-los. Túlio não poderia estar ali, ainda que a versão que me davam da origem daqueles corpos pudesse não ser verdadeira.

Depois de ir a essa sala literalmente desisti de achar Túlio na morgue. Impossível. Agradeci ao funcionário e pedi que me levasse à saída. Do lado de fora me pareceu ver um caminhão carregado de corpos que chegava. Mas a repressão ainda continuava, tantos dias depois do golpe? Eu devia já estar delirando.

German Rama me esperara, com a paciência de quem imaginava o que eu tinha ido ver. Entrei no banco da frente de seu carro como pude e desabei. Chorei, chorei, sem conseguir me conter e sem dizer palavra. Rama também não disse nada. Esperou um pouco e me perguntou onde eu queria ir. Disse, como pude, que me levasse à casa de meu compadre Luiz Alberto, que também trabalhava na CEPAL. Seguimos em silencio, eu soluçando, tentando me recompor. Lucia e Luiz Alberto receberam os frangalhos de gente que Rama lhes entregava e que ainda chorava sem parar. E cuidaram de mim até eu me acalmar, para que pudessem me levar à minha casa… Nem me lembro como lá cheguei e o que Stella teve que fazer para que eu me recuperasse.

Mais tarde, já na França, assisti ao filme Missing, de Costa Gavras. Relata a história real de um pai norte-americano, interpretado por Jack Lemon, buscando seu filho jornalista – seu nome era Charles Herman – que desaparecera no golpe de Pinochet no Chile. O desenrolar da busca, junto com a jovem que se tornou sua viúva, foi quase idêntico ao da minha busca de Túlio, com Naná, com a diferença enorme de ter encontrado o corpo do filho, levado com honras aos Estados Unidos. Estiveram nos mesmos lugares, somente com a busca em hospitais a mais, aos quais já não fomos depois do conselho de procurar na morgue aquele que buscávamos. Até a sala dos “patos malos”, com seus corpos amontoados, era exatamente como eu a tinha visto. Revivi todas essas emoções e até pretendi, sem sucesso, aconselhar Naná a não ver o filme.

Quando me refiz da ida à morgue, achei que deveria procurar o major que me dera duas vezes uma autorização para ir a lugares sob controle dos militares. Embora tivesse sido sempre amável comigo – lembremo-nos de Lavanderos – ou talvez por isso mesmo, sentia uma quase necessidade de ver como reagiria quando lhe dissesse o que achava que tinham feito com Tulio.

Procurando de novo localizá-lo – ainda tinha comigo seu nome – soube que os serviços em que trabalhava tinham sido transferidos para o edifício monumental Gabriela Mistral, na Avenida Providencia. Estava então ocupado por militares, depois de ter sido o amplo espaço em que o grande crítico de arte e ativista político brasileiro Mario Pedrosa tinha instalado, a pedido de Allende, o Museu da Solidariedade de Santiago de Chile.

Eram mais lembranças a me provocarem tristeza. Rememorava o que tinha visto naquele Museu, que eu visitara mais de uma vez. Além disso, Mario Pedrosa e Túlio tinham estado asilados nos mesmos dias na embaixada chilena no Rio, e vieram no mesmo avião para Santiago. E um pequeno grupo de asilados de que Tulio e Naná faziam parte pediu, mais de uma vez, para passar algumas horas ouvindo Mario Pedrosa, sentados à sua volta no gramado da casa em que eu e Stella morávamos, e na qual tínhamos acolhido Naná quando chegou ao Chile, escapando da repressão no Brasil.

Mas respirei fundo e fui ao gabinete que me foi indicado, surpreendendo um pouco o Major, que me reconheceu, antes mesmo de eu lhe lembrar onde nos tínhamos visto antes. Contei-lhe então, detalhadamente, a busca que tínhamos feito, sem sucesso, desde a primeira ida a Escola Militar com o documento de Tulio, que ele tinha autorizado a retirar no Comissariado do bairro, e o que eu tinha visto na morgue, assim como minha anotação dos nomes dos jovens oficiais que eu tinha obtido na Escola Militar. E esperei, ainda que não soubesse muito bem o que poderia conseguir com ele. Depois de me ouvir ele ficou um pouco em silencio, quase como se quisesse apresentar suas condolências, e observou que eu tinha feito uma investigação bem completa, como se fosse um bom detetive policial. E depois de um pequeno silencio, disse que não via o que ele mesmo poderia fazer.

Agradeci assim mesmo e me despedi. E quando relatei essa conversa aos amigos da CEPAL com quem nos reuníamos todos os dias na sala do economista Eric Calcagno para distribuirmos, entre nós, tarefas de encaminhamento de pessoas a embaixadas, concluíram que seria prudente que eu saísse do Chile. Segundo eles o Major me identificara como alguém que “sabia demais”.

Alguns dias mais adiante já tinha sido articulada pelos colegas uma “missão externa” para mim, para participar em Paris de um seminário sobre disseminação de informações, promovido pela OCDE, como representante da CEPAL. 

Ao mesmo tempo, tínhamos chegado com Naná à conclusão de que não havia mais nada a fazer quanto à busca de Tulio e era melhor que ela se asilasse, inclusive porque, pelos mesmos motivos, ela passara a viver muito mais riscos do que eu. O asilo foi rapidamente conseguido junto à embaixada da Itália – facilitado pelo fato de seu pai ser descendente de italianos – onde ela veio a encontrar outros brasileiros, entre os quais José Serra, velho amigo nosso.

Mas estávamos preocupados em acompanhar de perto sua saída do Chile – já tínhamos tomado consciência e tido a experiência de que em regimes ditatoriais tudo pode acontecer. A conjunção de datas nos ajudou e marcamos nossa viagem para a França na mesma data e no mesmo voo em que ela partiria para a Itália, de modo a podermos acompanhá-la até dentro do avião. 

No dia da partida, que seria no fim da tarde – estávamos em outubro, perto de dois meses depois do golpe, mas nem Naná nem nós nos lembramos do dia certo – dei uma passada pela manhã na casa de Enrique Iglesias, Secretário-Geral da CEPAL, para lhe dizer que estava partindo para a missão de que fora incumbido. Ele mal abriu a porta e foi logo dizendo: que bom que você veio me ver! Não faça escala no Brasil. Conceição Tavares e Alaor Passos acabam de ser presos, ao desembarcarem! Os dois eram funcionários das Nações Unidas, Alaor trabalhando na mesma Divisão de Assuntos Sociais em que eu estava lotado. 

Voltei rapidamente para casa e contei para Stella o que ouvira de Iglesias. Pensamos um pouco e decidimos de todo modo viajar naquela tarde com Naná, cujo voo não poderia ser transferido. Podíamos programar nossos passos facilmente, porque estávamos sozinhos. Nossos quatro filhos já estavam com os avós no Brasil, levados pela minha irmã Lena, que voara para o Chile tão logo o aeroporto de Santiago se abrira, para levá-los o quanto antes. 

Acertamos com a companhia aérea a interrupção de nosso voo em Buenos Aires, com data em aberto para a continuação para a França, sem escala no Brasil. E no começo da noite, voando com Naná para Buenos Aires, Stella lhe passou o nome e o telefone de uma freira das Cônegas de Santo Agostinho que poderia ajudá-la quando chegasse a Roma.

Quanto a nós, hospedados em Buenos Aires no apartamento de Paco del Campo e Gladys, nossos amigos argentinos dos tempos de juventude, na JUC, vivemos outras peripécias, que conto em outra parte, em nossa tentativa de saber até que ponto éramos também “esperados” no Brasil. E finalmente seguimos para a França, tendo a agradável surpresa de sermos acolhidos no aeroporto por Michel Wagner, uma pessoa que conhecíamos dos anos vividos antes na França e que era Secretário-Geral da CIMADE, organização protestante que assumira o apoio aos refugiados do Chile. Mais tarde ele nos disse que se impressionara com nossa cor ao chegarmos: estávamos verdes… E eu constatei que tinha pago com sete quilos a menos a intensa atividade diária em que mergulhara, desde o golpe: reduzindo ao mínimo meu trabalho na CEPAL, passei a dividir todo o meu tempo, nas horas permitidas pelo Toque de Recolher, entre a busca de Tulio e verdadeiras “operações”, sozinho ou em conjunto com colegas das Nações Unidas, para colocar pessoas que corriam perigo em embaixadas, depois de conseguir que os respectivos embaixadores aceitassem dar-lhes asilo – como conto em outro trecho destas memórias. 

Logo após a nossa partida, a mãe de Túlio, Nairza Quintiliano, esteve por cinquenta dias em Santiago numa busca incansável pelo paradeiro de seu filho, batendo em todas as portas – por cartas ou pessoalmente – de autoridades brasileiras, chilenas e internacionais. Seu sofrimento e sua tenacidade comoveram muita gente, mas foi em vão.

Naná, Stella e eu voltamos ao Chile 42 anos depois, numa viagem bem preparada por nossa filha Silvia, de que também participou Flavia, filha de Naná e Túlio, prosseguindo o esforço para que sejam julgados os assassinos de Túlio e encontrado o seu corpo. Ficamos os cinco acampados uma semana num pequeno apartamento alugado por Naná pela Internet, que deixamos num sábado pela manhã, exaustos, ao final de dias intensos em que cada um somatizou à sua maneira as emoções vividas. E foi nesses dias no Chile que mudaram minhas conclusões sobre as circunstâncias da morte de Túlio, a partir das informações a que tivemos acesso pela leitura dos processos relativos ao seu desaparecimento, por encontros com pessoas que viveram tragédias similares, e pela visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em cujo painel de desaparecidos está uma foto de Túlio. Mas tudo isso conto em detalhe em outro trecho destas memorias.